Em Outubro de 1908, Manuel Laranjeira, em
carta dirigida a Miguel de Unamuno, declara que
O
pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo
do próprio Alexandre Herculano (que se suicidou pelo isolamento como os monges)
não são flores negras e artificiais de decadentismo literário. Essas estranhas
figuras de trágica desesperação irrompem espontaneamente, como árvores
envenenadas, do seio da Terra Portuguesa. São nossas: são portuguesas: pagaram
por todos: expiaram a desgraça de todos nós. Dir-se-ia que foi toda uma raça
que se suicidou,
acrescentando
mais adiante: “Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a
crença — na morte libertadora”
A morte como liberdade é um tema de cariz
romântico mas, mais do que isso, de grande pendor trágico; e este aparece na
esperança de “vida-na-morte”, bem como na própria representação da vida. Assim,
aliando as duas concepções, que pensamos estarem presentes nas obras de Manuel
Laranjeira, pretendemos analisar como se corporiza na escrita de um diário — o Diário Íntimo — a construção do próprio
sujeito que escreve de si, construção essa que nos parece ser trágica, não só
no confronto do eu consigo mesmo,
assim como com os outros, a sociedade, e com Augusta, figura a quem o autor dá
um grande relevo.
Sobre Miguel de Unamuno, Manuel
Laranjeira escreve, no dia 16 de Agosto de 1908: “Querer crer e não poder crer,
desejar ter fé e não poder sufocar a dúvida… — eis a tragédia”. Tendo em conta
a definição de tragédia dada nesta frase por Laranjeira, parece-nos claro que
esta se adapta à sua própria vida. Ele deseja crer em si embora não possa, pois
não consegue não duvidar de si (ou dos outros, uma vez que ele é superior?);
ele quer acreditar na sua relação com Augusta mas não consegue; ele não pode
crer na inexistência de Deus mas, paralelamente, não consegue acreditar nele. E
a impossibilidade de crer torna-se trágica pela oposição entre querer e poder.
Tendo em Camilo Castelo Branco, Antero de
Quental e Soares dos Reis paradigmas do suicídio como forma de viver a vida na
morte, nota-se em Laranjeira um apelo à aniquilação para se libertar da vida,
que o entedia e horroriza.
O
afastamento de Manuel Laranjeira do
vulgo, concretizando um sentimento de superioridade, toma imediatamente forma
na primeira entrada do seu diário, a propósito da representação de um excerto
do ...Amanhã, texto dramático de sua
autoria:
Não vou. Não suporto o público quando pateia e
muito menos quando aplaude. Haja ou não haja quem me admire — adiante, je m'en fous. Que eu tenha de
sofrer-lhes a admiração — isto é que é intolerável.
Acrescentando,
um pouco mais à frente: “Tolerar o público seria colocar-me abaixo de mim
mesmo, abaixo do que eu penso de mim mesmo”.
A construção que de si faz como um eu superior ao que o rodeia remete para
o sentimento de solidão. Na verdade, em diversos momentos da escrita do diário,
Manuel Laranjeira exprime a sua preferência por estar só: “A mim também me
agrada mais a solidão, mas a solidão sem ninguém a acompanhar-nos”. Esta
afirmação acontece num momento de meditação, de questionação sobre o passado —
subentendido em “Aquele «grande amor»”, uma vez que as aspas sugerem que foi um
grande amor mas já não é — e o presente — visível nas formas verbais “Não
estou”, “parece” e “me agrada”. Esta entrada do diário ganha ainda especial
importância ao termos em conta a oração adversativa “mas a solidão sem ninguém
a acompanhar-nos”. Com efeito, Manuel Laranjeira salienta a diferença entre a
solidão (ontológica) no meio da turba ou quando está com Augusta e se sente
sozinho, da solidão (ontológica) de facto, “sem ninguém a acompanhar-nos”. O
plural do verbo “acompanhar” remete para o seu sujeito composto que,
subentendemos, é ele e a solidão. Este momento de reflexão corporiza uma suspensão
no tempo, uma paragem para depois, muitas vezes na entrada seguinte, retornar à
acção. Com efeito, é mais abundante o tempo de reflexão nas entradas do diário
do que tempo de acção.
Este
tempo de reflexão propicia ao autor fazer o balanço do dia que acaba ou um
exame de consciência, que são próprios deste género autobiográfico. E é ao
fazê-lo que encontramos um sujeito trágico em confronto com três pólos: Deus, o
mundo e Augusta.
António Apolinário Lourenço, sobre a
relação de Manuel Laranjeira com Deus, informa: “era, em matéria de fé, um
descrente que não se conformava com a inexistência de Deus”. Acrescentamos
apenas que nesta simultaneidade entre descrença em Deus e descrença na sua
inexistência reside um dos aspectos trágicos de Laranjeira[1].
Contudo, esta mesma abdicação de Deus por Laranjeira é relacionável com a
centralização do diário no sujeito.
O outro pólo mencionado que se confronta
com o sujeito do diário é o mundo. Em relação a este, é visível um claro
desprezo e até mesmo ódio por parte de Laranjeira, pois aquilo que quer, aquilo
em que acredita não se coaduna com o mundo — “Decididamente o mundo pode
afundar-se em ruínas que não me causa mágoa nenhuma” —, residindo nesta
oposição o trágico do reconhecimento da sua impotência perante a sociedade
decadente. Clara Rocha afirma que “O tédio [de Manuel Laranjeira] resulta do
confronto entre a busca da perfeição e a fealdade do mundo”. Mais do que o
tédio, parece-nos que é desse confronto que nasce o trágico presente no Diário Íntimo e que resulta no suicídio
do seu autor — “Laranjeira escolheu nele [no suicídio] o repouso para o seu
cansaço”.
No
que diz respeito a Augusta, é talvez possível discernir dois tipos de trágico.
Por um lado, a tentativa de acreditar naquele amor, mas, inevitavelmente,
duvidar. Exemplos disto são a reflexão feita pelo sujeito: “há quem nasça para duvidar...
Eu, por exemplo...”; e a súplica feita por Augusta: “— Porque o que eu queria
era que cresses em mim também, que cresses — no amor. Crê no amor: o amor
existe. Crê”. Por outro, vemos um complexo conflito trágico: se, por um lado, é
junto dela que pensa ter alguma felicidade, ainda que mínima, apenas sem ela
consegue ter a liberdade que tanto deseja. Assim, o confronto entre felicidade
e liberdade, uma vez que ambas não se podem conciliar e uma aniquila a outra,
irremediavelmente, é um conflito trágico. Este conflito de que falamos está
visivelmente presente na entrada do dia 19 de Setembro:
Saio com uma alegria
feroz a estoirar-me na alma — a alegria doida de um homem que acabasse de
perder quanto tinha. Enfim! livre e só! e só! — desgraçado. Esta liberdade
suprema custou-me a felicidade... Por isso é horrivelmente saborosa. Saio, vagueio à toa, como alguém que não
sabe o que há-de fazer de tanta felicidade. Ao cruzar uma rua, sinto-me
agarrado pela Augusta trémula, perdida... — Vem comigo. Depressa! senão caio
morta na rua. — E eu, sem uma palavra, vou. Adeus, liberdade, estou preso outra
vez... (itálico nosso)
Os sintagmas “alegria feroz” e
“[liberdade] horrivelmente saborosa” evidenciam a simultaneidade dos
sentimentos contrários que um conflito trágico propicia; também a “alegria
doida de um homem que acabasse de perder quanto tinha” demonstra a antítese de
sentimentos provocada pelo confronto entre liberdade (“alegria doida”) e
felicidade (“perder tudo quanto tinha”). Para a caracterização do referido
conflito, encontramos também a repetição de “e só!”, seguida de “desgraçado”,
parecendo, com isto, dar à copulativa “livre e só!” um valor adversativo (livre
mas só!). Além disto, fica também
espelhada a contradição entre a “alegria doida” de se ver livre e a desgraça de
se ver só. Contudo a frase que melhor corporiza o conflito trágico que reside
no sujeito é aquela em que este diz: “Esta liberdade suprema custou-me a
felicidade...”, tendo as reticências a função de suspensão no pensamento para
reflectir sobre si. No entanto, a liberdade de novo desaparece, pois o sujeito,
“sem uma palavra”, dela se despede para se entregar à suposta felicidade
materializada em Augusta. Importa dizer que a felicidade de que o eu fala quando escreve “vagueio à toa,
como alguém que não sabe o que há-de fazer de tanta felicidade” não é a mesma
que aquela outra em “Esta liberdade suprema custou-me a felicidade...”; esta
remete para a felicidade com Augusta — um dos pólos do conflito trágico —,
aquela para a felicidade que a liberdade lhe dá — não sendo então o outro pólo
do conflito.
Outro
aspecto de bastante interesse na literatura diarística em geral e no Diário Íntimo de Manuel de Laranjeira em
particular, pelo que de trágico e romântico contém, é a relação do autor com a
morte. Em Manuel Laranjeira, o suicídio acaba por se concretizar realmente como
solução única possível para viver a vida na morte, uma vez que viveu a morte na
vida:
Nestas horas assim gris,
sinto a sensação penosa de que a vida se me está gastando, esgotando,
imbecilmente... — sem eu a viver. E sinto esta ideia de pesar que hei-de morrer
sem ter sabido viver a vida... Afinal o mal da nossa vida é não saber vivê-la...
ou não poder...
Também nesta relação com a morte é verificável
o problema da crença em Deus. De facto, “prescindir de Deus é fazer da morte o
único absoluto”, como afirma Marcello Duarte Mathias.
O
suicídio de Manuel Laranjeira em 1912, apenas três anos após a suspensão do
diário, é o culminar desta existência entediada e trágica. De facto, numa das
últimas entradas do Diário Íntimo,
Manuel Laranjeira pressente já a aproximação da morte: “E, como eu tenho tosse
também, começo a pensar que morro e que esta tosse pertinaz é o começo do
fim...”. Mas não é a tuberculose que o mata. Antes disso, Laranjeira decide pôr
termo à sua vida, juntando-se então àqueles (Antero, Soares dos Reis, Camilo e
Herculano) que “expiaram a desgraça de todos nós”.
No
Diário Íntimo acompanhamos um tempo
(não chega a um ano) da curta existência de Manuel Laranjeira que ilustra de
modo significativo o caminho seguido até ao suicídio. Paralelamente, estamos
perante uma escrita pouco cuidada, rápida, própria da literatura diarística.
Contudo, esta mesma escrita torna-se complexa pela construção que o autor de si
faz, pelo modo como trabalha o tempo, característica de grande importância na
escrita de um diário.
[1] Factor de grande relevo é a grande ambição de Manuel Laranjeira, expressa
não só no Diário Íntimo, como
nos poemas “Comigo (Diálogo com a minha alma)” e “Blasfémia Inútil (À margem do
“Génesis”)”, querer ser como Deus ou querer ser o
Deus que não existe ou ainda maior que Deus. Sobre este assunto, Nuno Júdice
afirma que “A
ambição de ser Deus não é mais do que o sonho de ascender à categoria de Autor
— aquele que domina o destino dos personagens”.
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