sábado, 17 de maio de 2008

Hora do Conto

Querida amiga, aceita estas palavras que tentarão, de forma com certeza deficiente, retratar-te a minha vida, e o momento pelo qual estou a passar.

Levanto-me de manhã e nada tenho a fazer, já nenhum raio de sol me surpreende e quando olho pela janela há sempre nuvens a bloquear a alegria de viver, a que tive durante outros tempos. Vou à sala de estar e espero por um ruído em minha casa, que me mostre que estou acompanhada, em vão…Esqueço-me muitas vezes que o António me deixou há já sete anos. A única companhia que tenho é a da minha filha Francisca que me vem dar um beijinho, de quando em vez, quando o trabalho lhe permite, e os livros sobre o fado de antigamente, na força dos anos sessenta, nos nossos anos.

Lembro-me tantas vezes quando íamos as duas na rua a cantar, ou cantávamos a convite de cavalheiros, no barzinho que gostávamos de frequentar. Costumávamos dizer que enchíamos as noites de magia, costumávamos dizer que havia uma carreira na música à nossa espera. Mas conhecemos os nossos esposos e todo esse sonho ficou adiado. Tenho pena. Sinceramente, ainda hoje creio que teríamos sido alguém nas cantorias, talvez não muito conhecidas, mas certamente profissionais. O que é certo é que acho que, nem eu nem tu trocaríamos a vida que tivemos, apesar de tudo.

Tenho hoje setenta anos e espero nada mais que o meu último dia. Não há já nada que me faça rejuvenescer o espírito, cansado e velho, e espicaçado por tudo o que vejo hoje.

Ontem fui acompanhar o meu neto à Serenata a Lisboa. Que bonito que ele estava, todo trajadinho. Senti orgulho no orgulho que ele sentia em pavonear-se com o traje da sua faculdade, que coisa linda, que noite bonita. Já não bem como dantes, pois a tradição já não é o que era, e creio que no tempo a seguir às folhas caídas do meu neto, no seu Inverno, ainda existirá esse provérbio, pelo que ele ainda o poderá dizer relativamente à Serenata a Lisboa dos netos dele, mas isso, já eu não verei, e ainda bem.

Porque viver é isto mesmo, efemeridade, num dia somos tudo, no outro nada, num dia somos jovens e temos o sangue na guelra, no outro somos velhos e esperamos o nosso fim, e nesta vida, não há já nada que cá me prenda…

E é por isso minha querida Amália, que tenho pena de não termos cravado o nosso nome na história da música. Assim, poderíamos morrer descansadas, que sempre por cá ficávamos, para nos escutarem ao menos nas notas mais suaves das nossas belas vozes, adultos, crianças, ou idosos, porque a música é para todos, e não precisa de ser compreendida por todos, porque só a melodia separada da compreensão, já consegue tocar os mais rígidos corações. Porque a música e bela, e nós não ficámos na sua história.

Se ao menos tivéssemos tentado e lutado para cantar…

Da tua amiga que continua a adorar-te:

Simone.



Eduardo Rilhas



palavras chave:

corpo, doença, nocturno.

6 comentários:

Pseudónima disse...

Este, este... está lindo. =) Conta-nos mais contos destes, por favor.

... posso voltar?

Anónimo disse...

pOr que só podias ser tu!

*

Kamon disse...

Ontem vi um filme, que de certa forma, era o mesmo tema. A solidão nos últimos dias. Como não quero deixar "spoilers", aqui, apenas direi que me senti como se fosse um neto destas senhoras. Solidão, saudade e dor deviam ser as palavras chaves deste texto, porque é isso que sinto, é isso que encontro.

Kamon disse...

* Um neto destas senhoras, a ler a carta depois da sua morte...

Anónimo disse...

Os jogos com as palavras, as ideias...
Mais uma vez, Brilhante!*

Anónimo disse...

Os jogos com as palavras, as ideias...
Mais uma vez, Brilhante!*