J. Filipe Ressurreição
Olhar, quer para a
frente ou para trás, quer para o futuro ou para o passado, pode evocar uma
acção de coragem seja por querermos recordar/saber o que aconteceu antes, seja
por almejarmos saber o que nos espera depois do momento em que se olha. Esta
coragem está presente em muitos dos heróis camilianos, não tanto por olharem em
frente, mas por nunca olharem pra trás.
Clássico da
literatura portuguesa, obra-prima de Camilo Castelo Branco e do romantismo
literário português, Amor de Perdição (1862) é exemplo flagrante dessa força de que
falo.
Simão Botelho e
Teresa de Albuquerque amam-se. Camilo, através da sua escrita, dá a entender ao
leitor que aquele é um amor inquebrantável. Mesmo antes de sabermos o nome de
Teresa, temos já acesso à história do tio do autor. Na “Introdução”, depois de
transcrever a assento de entrada na cadeia de Simão, informa-nos o autor
textual: “A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos beijos das
irmãs para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor
da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E
degredado da pátria, do amor, e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem
liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um
amigo!... É triste!”
Note-se, antes de
mais, nas várias enumerações quase consecutivas e na pontuação utilizada: nunca
um ponto final; sempre pontos de exclamação, seguidos ou não de reticências.
Umas e outra têm a clara intenção de intensificar a história daquele moço, por
si já de grande intensidade, junto do leitor.
Depois deste
parágrafo, tinha Camilo escrito no seu livro até à segunda edição: “O leitor
decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha, a história daqueles dezoito anos, choraria!”
(itálicos meus). Contudo, o escritor oitocentista descobre a frase que, “em
menos de uma linha”, conta a história de Simão, corta o excerto que acabo de
transcrever para ser substituído pela frase “Amou, perdeu-se, e morreu amando.”
É das poucas frases categóricas desta “Introdução”. Além disso, tal como a
oração do capítulo II “Simão Botelho amava.”, também esta é uma frase lacónica.
Outra das funções desta sentença, que constitui ela só um parágrafo, é a de ser
um dos elementos do capítulo introdutório, juntamente com o título do romance, que
inicia a ironia trágica. De facto, ao iniciar o capítulo I, o leitor sabe já
tratar-se aquele amor de um amor de perdição, sabe também que Simão será preso,
desterrado para a Índia e saberá ainda que “[a]mou, perdeu-se, e morreu
amando”. Quando no romance é mencionado algo que possa contrariar este
desenlace, sabem j á os leitores que é vão por terem
conhecimento de aspectos que as personagens não têm, neste caso da
inevitabilidade da morte.
Uma vez que falamos
da famosa frase de Amor de Perdição,
cabe perguntar: quem ou o que amou Simão? Por quem ou pelo quê se perdeu? Por
quem ou pelo quê morreu amando? À primeira questão, penso que é possível
responder, com certeza, que se refere a Teresa. Podem os leitores do romance
considerar que esta seria a resposta às três perguntas formuladas. Apesar de
ser, nas duas últimas há que acrescentar algo. Na verdade, Simão perde-se, ao
matar Baltasar, por amor a Teresa mas também por amor à sua honra ferida. E no
final do romance, Simão morre, amando Teresa mas amando também a vida (“Ânsia
de viver era a sua; não era já ânsia de amar”).
Em Amor
de Perdição assistimos a um amor contrariado entre Simão e Teresa. Na
verdade, a inimizade entre os pais dos heróis, Domingos Botelho e Tadeu de
Albuquerque, parece ser aquilo que separa os amantes apaixonados[1]. E de
facto é, no mundo terreno. Porém, através das páginas do romance, percebemos
que há algo superior a isso: a força do destino é superior a qualquer ódio ou
amor. Podemos, talvez, aceitar que os pais de Simão e Teresa são os agentes
dessa força implacável. Com efeito, o trágico de Amor de Perdição parece-nos que reside nisto: o destino inexorável
abate-se sobre dois jovens amantes, e estes não se contentam em a ele se
resignarem; os heróis lutam contra uma fatalidade que os esmaga. Não desistem
nunca. E é nesta luta contra o destino, mesmo quando têm consciência de que
perderão a batalha, que reside toda a tragédia destes dois jovens, cujo único
crime que cometeram foi amar.
Melhor talvez seria dizer que essa força
de que falamos está intimamente ligada a Simão, e só por consequência disso é
que se abate também nas personagens que ao herói estão ligadas[2].
Afirmamo-lo com convicção porque o romance, tal como acontecia na tragédia
grega, segundo Jacqueline de Romilly, “não deixa de indicar, para além do
homem, forças divinas ou abstractas que decidem da sua sorte e decidem sem
apelo”. Assim, “Simão sabe-se marcado por um Destino”, diz-nos Jacinto do Prado
Coelho, e sabe também que todas as pessoas que a ele se unirem serão também
vítimas dessa fatalidade; também Mariana tem conhecimento dessa força em Simão;
a própria mãe do herói, ao escrever-lhe, dá conta do “fatal destino [que] não
quis largar a vítima” ao nascer, uma vez que era falsa a notícia de que Simão
tinha nascido morto.
Mas se há uma força
que actua sobre Simão e contra a qual ele luta mesmo tendo consciência da sua
vanidade, há também, no romance, outra força não menos importante: o amor. E
destas duas entidades surge, inevitavelmente, o sofrimento. Maria de Lourdes A.
Ferraz evidencia esta causa do sofrimento quando diz que, “no que respeita à
diegese [dos romances camilianos], tudo se resolve em torno de um conflito cujo
fulcro é sempre o amor. E uns amam bem (servem o amor), outros amam mal
(servem-se do amor). Aqueles ou aquelas são sempre recompensados, ainda que
seja com a libertação da morte, estes ou estas são ou castigados ou recuperados
pelo arrependimento.” Na primeira carta de Teresa a Simão, a menina já lhe diz:
“Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do
coração, e sempre leal.”
Durante o caminho percorrido, as
personagens que “amam bem (servem o amor)” mostram-se umas vezes corajosas e
prontas a lutar contra um destino implacável, mas mostram-se igualmente
aceitando esse destino que é a morte. Mostram-se, acima de tudo, sempre altivas
e prontas a avançar, sem medo, sem olhar para trás.
[1] “O pai de Teresa não embicaria na impureza
do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se
compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do
rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do
magistrado. (...) Seria impossível o reconciliarem-se.”
[2] Por exemplo, diz Simão: “Tanta gente
desgraçada que eu fiz!...”
2 comentários:
Bem escrito, as usual.
Obrigado ;)
E conteúdo?
Enviar um comentário