quinta-feira, 1 de maio de 2008

As pancadas de Molière


Eu não tenho mais nada do que isto. Sem isto perco-me de vez, não sou mais eu, sou a segunda pele a pisar vitória para sempre sobre a primeira. E perco tudo de rajada, como foi com a casa, como foi com as estrelas, como foi com o veneno na comida do cão ou o cancro a comer-me os restos de família. Os meus primos ciumentos são mais que os pais, sem dúvida, mas perdem-se muito mais coisas na vida do que se ganham. Pelo menos continua a vida cá, mas de resto, perde-se muito mais, vai por mim.

A menina dos prémios infantis foi para casa sem receber o prémio. Disse que enquanto não o merecesse, não queria sequer ouvir a música dos aplausos. O menino maneta prometeu arranjar maneira de tocar piano (encontrou um galho de dedos fininhos, que encaixava miraculosamente na fenda que tinha nos dentes). Um drogado foi à igreja e confessou-se e descobriu que não tinha tantos pecados, quanto isso; saiu mais limpo. Do outro lado da rua, alguém tirou a vida a alguém, para que lhe tirasse as patas de cima. Alguém violentou filhas vinco e cinco vezes anuais, que lhe deram a proeza de se dividir em pai e avô, ao mesmo tempo. Em toda a parte, existem gritos que metem medo, só de ouvir. As únicas pancadas bonitas são as de Molière, as outras todas oferecem sempre mais - mais dó, menos sol. Existem crianças - Crianças - que nunca chegarão a saber o que é isso de ser Criança - saber tudo e depois desaprender, nunca saberão, saberão sempre demais. Depois há missas aos Domingos e lugares no céu.

Eu não tenho nada mais do que isto. Não é para ficar bonito, não é porque quero ser boa em algo, é já não ter mais nada. Eu não quero, eu preciso. Preciso de saber que, se me portar bem e aprender as lições todas, um dia posso ser alguém. Posso conseguir; o menino maneta conseguiu. Mas só quando merecer. Quando merecer, vai ser o dia mais feliz da minha vida.

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